Antes do motivo, a minha trajetória
Antes de começar, é bom que fique claro que nem o que vou dizer, nem o que foi dito por todos os que já falaram sobre esse assunto é regra. Para se formar uma norma sobre algo, seria necessária a criação de algum tipo de federação para estabelecer uma convenção sobre termos e a dinâmica no BDSM... e isso não existe.
O que temos se limita ao seguinte: um grupo que leva adiante o termo BDSM como o que "explica" e representa o Universo das Relações de Poder. Termo esse criado, pensado e aprimorado por pessoas que nunca viveram o BDSM além das relações de fim de semana. É por isso que o termo foca nas práticas e não no fundamento principal, que é o Poder.
E o que tem ocorrido ao longo dos anos (e fui testemunha disso tudo no Brasil) é a perpetuação desse termo em um tipo de "copiar e colar" mental, onde as pessoas simplesmente levam adiante o que leram, sem pensar um pouco no que estão lendo.
Uma enorme falta de pensamento crítico abunda e, quando se pede para a pessoa fundamentar, ela "copia e cola" a explicação ou se limita a um mero "aprendi assim".
Aí, um indivíduo com veia dominante, recém-chegado comunidade BDSM de São Paulo em 2002, depois de ter absorvido tudo o que podia nos quatro anos seguintes, cria um mosaico mental com tudo o que tinha aprendido em uma quase literal "terra de índio", pois as melhores informações circulavam na base do boca a boca. Ele percebe que a maioria das peças não se encaixava bem umas com as outras e ainda sobravam muitos buracos (peças faltantes) para que tudo fizesse sentido.
Ah... para quem não percebeu, esse "um indivíduo" citado acima sou eu.
Em 2007, criei o Blog Diário de um Dominador e, nele, comecei a expor a minha visão disso tudo em meio ao turbilhão da minha própria evolução.
Desculpem, mas eu sou daqueles chatos que precisam que as coisas façam sentido; senão, eu não tenho paz.
E eu precisava muito dessa paz, pois ela envolvia a minha própria identidade nisso tudo.
Talvez seja pela minha própria estranheza... meu prazer nunca esteve nas práticas... estava no domínio em si... e o fim de semana não bastava... eu queria isso todo o tempo... e o "BDSM" não explicava nada disso, muito menos me mostrava um caminho para seguir nisso como estilo de vida.
Aí comecei a fazer algo que ia na contramão da maioria dos adeptos e iniciados... comecei a pensar, a discordar daquelas velhas opiniões formadas sobre tudo que circulavam como aprendizado... e a escrever a minha própria cartilha de como as coisas deveriam ser... uma que fizesse sentido para mim (e para pessoas alinhadas com a minha forma de pensar).
Toda essa introdução tem uma razão... o que vou falar daqui para frente tem a ver com raciocínio, vivência pessoal, observação do ecossistema à minha volta e experimentação via modelos mentais e tentativa/erro.
Aliás, foi muito mais nos erros do que nos acertos que extraí os melhores aprendizados e cheguei às primeiras conclusões mais fundamentais para mim.
Agora sim... vamos ao tema... e o tema aqui é:
O que é, de fato, o tal BDSM
E "aquele indivíduo" (no caso, "Eu") foi além do que esperava em sua busca e percebeu que:
- BDSM é um termo carregado de estereótipos ruins, visto que já ouvi de recém-chegados coisas como: "É preciso gostar de dor e/ou gostar de apanhar para 'ser' BDSM?". Para o mundo "lá fora", que ainda trata esse universo como "sadomasoquismo" (sem nunca ter sido, pois os praticantes sempre se nominavam "SM"), sempre que se fala de "nós", tem a ver com cordas, surra e roupas de couro.
- O termo fala de práticas, e as práticas são apenas a forma como cada um erotiza o prazer que sente no exercício do poder. Logo, BDSM tratando de práticas seria como se falássemos de culinária japonesa a partir dos seus pratos. Citei esse exemplo em particular porque a culinária japonesa é algo que dificilmente é unânime, ou seja, poucos gostam de tudo. Quando falamos dos pratos, é como se falássemos das práticas do BDSM, e isso é algo que separa as pessoas. Já falar da culinária japonesa em si ou sobre o poder nas relações já é algo que une a todos.
Existem alguns que vivem 24/7... eu conheço 3 casais... só que eles não filosofam sobre o assunto nem divulgam material que sirva de referência para quem quer viver esse tipo de relação. O único que começou a estudar e filosofar sobre isso, batizou o nosso universo de "Relações de Poder" e se dedica a transmitir essa informação a quem interessar possa, é "aquele indivíduo", na verdade, este que vos fala.
Mas Gladius disse que não existe vácuo de poder... sinto muito, é preciso que se faça uma correção.
A frase "Não existe vácuo de poder" é atribuída a Marco Antônio, quando ainda era General Romano.
E ela não fala de relações puramente... ela fala da natureza humana.
Estas são duas outras frases que gosto muito de citar... aliás, adoro aforismos, pois esses "ditos populares" carregam muita sabedoria e são a mais pura forma de falar muito dizendo pouco que busco exercitar. Mas, como podem ver, vivo falhando nisso miseravelmente.
- "Nada revela o verdadeiro caráter como o uso do poder". - Robert G. Ingersoll.
- "Tudo nesse mundo é sobre sexo, exceto sexo. Sexo é sobre poder". - Oscar Wilde.
Estas frases também falam sobre a natureza humana e não sobre as relações em si... e atenção, aspirantes a submissas: a frase "Nada revela o verdadeiro caráter como o uso do poder" carrega, no seu bojo, uma das melhores maneiras de se verificar a competência de um parceiro dominante em avaliação.
Entendido isso, vamos para os tipos de relações, e vou focar apenas na distinção por dois fundamentos de que todas as outras podem derivar. Estou falando das relações verticais e horizontais e das relações convencionais (baunilha) e não convencionais (kink, no inglês, fetiche, no português).
A existência de poder na relação define se ela é VERTICAL (com hierarquia/alguém mandando na porra toda) ou HORIZONTAL (sem hierarquia / bundalelê).
Sobre as relações não convencionais, inicialmente a definição começava pela visão sexual da coisa, ou seja, falava-se de sexo convencional versus sexo não convencional, e, em minha visão, eles se dividem em:
- Sexo com pessoas diferentes.
- Sexo em lugares diferentes.
- Sexo com fetiche (que aqui tem seu significado restrito a fantasias sexuais, indumentária e brinquedos dos mais diversos).
- Sexo com jogos de poder.
E é importante destacar aqui que "fetiche", no Brasil, carrega esses dois significados:
- Um mais amplo, que traduz o termo "kink" americano, englobando tudo que não é convencional. Daí a frase que já devem ter visto por aí: "Todo BDSMer é um fetichista, mas nem todo fetichista é um BDSMer". (E que fique registrado que sempre abominei esse termo "BDSMer").
- Um menos amplo, que define a fatia das pessoas que se divertem com tudo de diferente que não envolva necessariamente poder, lugares diferentes e pessoas diferentes.
Também é importante destacar que ninguém é obrigado a fazer parte de uma área específica, podendo passear pelos universos de relações e sexualidade que quiser.
Isto tudo posto (e não soltem da minha mão agora, pois não quero ninguém perdido nesse passeio), podemos estabelecer alguns parâmetros.
Dado que seres humanos têm também, em sua natureza, a necessidade de rotular (dar significado) a tudo, "aquele indivíduo" buscou, por anos, uma maneira de demonstrar o que acontecia com uma relação de poder quando migrava para além da cama/fim de semana, região inexplorada para a maioria.
E foi aí que, depois de testar várias possibilidades, recentemente (coisa de uns 2 anos para cá), percebi que a solução seria a mais óbvia. Ou seja, nada mais lógico para dar nome a um universo de Relações de Poder do que "Relações de Poder".
E é com este nome, que cunhei e vejo com orgulho já incorporado no discurso de alguns, que consigo explicar a coisa mais fundamental: tudo por aqui é sobre poder.
Então, para existir, basta uma ou mais pessoas dominando e uma ou mais pessoas se submetendo, isso tudo dentro dos parâmetros do SSC (Sanidade, Segurança e Consensualidade), que, aliás, não são do BDSM, são da vida. Tudo isso, independentemente de preferência sexual ou identidade de gênero.
E fim.
Fim?
Sim, pois todo o resto é sobre gosto, ou seja, sobre BDSM, que para mim é uma sigla obsoleta para o todo, mas que ainda serve bem para o pessoal do fim de semana.
Master Gladius
Versão em áudio disponível na Casa de Gladius
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